(Editado por Dave Armstrong, a partir de cartas de e-mail encaminhadas: 1º de agosto de 1999)
O encontro em Assis (27 de outubro de 1986) é uma questão muito complexa: há muitos aspectos envolvidos, e é necessário estudar todos eles e – acima de tudo – fazer as devidas distinções. Na minha mensagem, eu pretendia apenas dar uma avaliação moral do ato em si e mostrar que ele não era moralmente condenável. Inicialmente, devemos nos perguntar: “O papa pecou no encontro de Assis?” João Paulo II também teorizou, em seus discursos, justificativas teológicas para esse ato. Devemos nos perguntar: “Essas justificativas são corretas ou heréticas?”
Depois disso, devemos levantar uma segunda espécie de questão: “Esse ato foi aconselhável ou gerou escândalos e desvantagens mais numerosos que as vantagens?” E então podemos examinar fatos correlatos, como a estátua de Buda colocada sobre o sacrário. “Qual é o valor das orações dos infiéis?”, etc. Todo homem deve ser religioso, pela lei natural; se as orações dos infiéis fossem sempre um pecado, teríamos uma contradição entre a lei natural e a lei divina positiva; mas não podemos admitir isso.
Uma terceira espécie de pergunta seria: “Existe uma diferença entre a teologia de João Paulo II e a de muitos teólogos progressistas, que ensinam que todas as religiões são equivalentes?” Um estudo desse tipo revela diferenças gigantescas! Por que, entre os principais teólogos progressistas (Rahner, Küng, a teologia feminista, etc.), ninguém aplaudiu esse ato?
Outra pergunta importante: “O ensinamento de João Paulo II é contraditório ao ensinamento de outros papas?” Antes de tentar responder a essa pergunta, perguntemo-nos: “Quantas pessoas leram grande parte do magistério sobre esse tema? É suficiente ler duas ou três encíclicas para julgar o ensinamento papal vivo? Quantos católicos conhecem ou leram os discursos papais sobre Assis?”
Portanto, vamos passo a passo, com muita paciência. Sou apenas um pobre pároco de uma vila na montanha que tenta dar respostas. Há um provérbio italiano que diz: “quando não há cavalos, os burros correm.” Devemos buscar respostas tradicionais unindo o ensinamento de João Paulo II, o ensinamento dos papas anteriores e o ensinamento dos teólogos escolásticos sobre a salvação dos incrédulos.
É um trabalho de pioneiros, que será útil se seguirmos com grande humildade, paciência e grande amor pelo papa. Pergunto a mim mesmo: Antes de pensar que o papa tem “ideias e práticas falsas e errôneas”, não seria necessário que eu fizesse todo esforço possível para compreender seus atos? Entre o papa e eu, quem tem mais probabilidade de se enganar? Compreendi bem o que o papa fez, o que disse, o contexto remoto de suas afirmações? Busquei uma solução em textos de estudiosos aprovados? Tenho certeza de que minha opinião é um veredito definitivo sobre o Santo Padre?
Outro sacerdote escreveu:
O problema é que, se você convida alguém a fazer algo, esse próprio convite constitui uma participação “FORMAL”. Convidar alguém para um assalto a banco… ou para roubar… isso é tornar-se responsável por isso, pois pelo seu convite você o “causou”. Pelo convite feito a todas as religiões para virem a Assis para rezar, o Papa causou essas orações e convidou à adoração de ídolos. (Rezar à água pela paz (sic!), rezar ao “Grande Polegar” pela paz, rezar ao homem Buda pela paz…).
Alguém me apresentou a objeção do escândalo ou da correta compreensão de Assis; podemos falar desse aspecto da questão depois que encerrarmos a análise do ato em si. Podemos debater as consequências do ato após o exame completo do próprio ato. No entanto, tentarei responder a todas as perguntas que os membros da lista me apresentarem.
Aqui temos uma mudança de ênfase: devemos distinguir entre o ato em si realizado pelo papa (estar junto para rezar) e a organização do encontro. No entanto, o papa tem alguma responsabilidade por essa organização: é pecado convidar infiéis para rezar? Para responder a essa pergunta, devemos nos perguntar: “Um infiel deve rezar?”
Cito aqui uma distinção feita por São Tomás:
a) A “incredulidade por simples negação” (infidelitas secundum negationem puram), no caso de um homem que “é chamado de incrédulo apenas porque não tem a fé”, ou seja, “naqueles que nada ouviram sobre a fé”; essa incredulidade não é um pecado.
b) A “incredulidade por oposição à fé” (infidelitas secundum contrarietatem ad fidem), quando “um homem se recusa a ouvir a fé” (S. Th. II-II, q. 10, a.1, corpo do artigo); essa incredulidade é um pecado.
O fato de que a incredulidade por simples negação não seja pecado não é apenas um conceito tomista, mas também uma verdade de fé: São Pio V condenou a proposição “Infidelitas pure negativa in his quibus Christus non est praedicatus peccatum est” (Denzinger 1068) (= “A incredulidade puramente negativa, naqueles a quem Cristo não foi pregado, é pecado”).
Um grande teólogo tomista, De Victoria, também especificou o grau necessário de pregação para que a incredulidade negativa se torne positiva: é necessário não apenas uma simples apresentação da fé, mas uma apresentação que inclua todos os motivos necessários de credibilidade. De fato, São Tomás ensina que “ninguém creria se não visse que deve crer” (non enim crederet nisi videret ea esse credenda – S. Th., II-II, q. 1, a. 4, ad 2). Só Deus conhece o grau de inocência ou de culpa no coração dos incrédulos.
Podemos então fazer uma pergunta mais precisa: um incrédulo (por simples negação) deve rezar? Acredito que a resposta seja “sim”, porque, segundo o ensinamento de São Tomás, sabemos que a religião faz parte da Justiça, e a Justiça é uma obrigação da lei natural. Todo homem deve ser religioso, porque todo homem deve ser justo (iustus). A oração é um ato de religião (não um ato de fé), portanto, todo homem deve rezar. Devemos, pois, dizer ao incrédulo: siga a lei natural; você deve ser prudente, temperante, forte, justo.
São Tomás afirma:
Ora, a lei divina, que é a lei da graça, não abole a lei humana (non tollit ius humanum), que é a lei da razão natural.
– S. Th., II-II, q. 10, a. 10, corpo do artigo.
Como seria possível que Deus ordenasse ao homem ser religioso, sabendo que os homens (hoje, a maioria da humanidade), sendo incrédulos “por simples negação”, ao cumprirem esse preceito, pecariam? Se um incrédulo não reza, peca (contra a lei natural). Se um incrédulo reza, peca, porque não reza ao Deus verdadeiro. Isso seria uma armadilha!
Portanto, concluo que o convite a incrédulos para rezar não é uma participação formal em um ato de falsa religião, mas é um convite formal a ser religioso, a seguir a lei natural. O Papa não diz: “Reze a um deus falso”, mas sim: “Reze [da melhor maneira que puder]”. Tudo o que for falso em tal ato de religião se torna um “voluntário indireto” (como a morte de uma criança no caso de remoção de um útero canceroso).
Mas agora surgem novas perguntas: Por que o homem deve ser religioso se ele não pode conhecer a verdadeira religião? Um ato de religião pode ser especificado por um objeto material falso (como o de uma falsa religião)? Segundo São Tomás, o exercício da religião por um incrédulo pode ser uma espécie de preparação natural para receber a graça. Em In IV Sent., II, dist. 28, q. 1, a. 4, ad 4, ele escreve:
É possível, pela razão natural, preparar-se para ter fé… Se alguém, entre os povos pagãos, faz o que está ao seu alcance (quod in se est faciat), Deus lhe revelará o que é necessário para a salvação, seja por uma inspiração que Ele lhe dará, seja por um sábio que Ele enviará a ele.
(…etiam ad fidem habendam aliquis se praeparare potest per id quod in naturali ratione est; unde dicitur, quod si aliquis in barbaris natus nationibus, quod in se est faciat, deus sibi revelabit illud quod est necessarium ad salutem, vel inspirando, vel doctorem mittendo. Unde non oportet quod habitus fidei praecedat praeparationem ad gratiam gratum facientem; sed simul homo se praeparare potest ad fidem habendam, et ad alias virtutes et gratiam habendam.)
— S. Th., I-II, q. 109, a. 6, corpo do artigo
A preparação da vontade humana para o bem é dupla: a primeira, pela qual ela se prepara para agir retamente e gozar de Deus; e essa preparação da vontade não pode ocorrer sem o dom habitual da graça, que é o princípio das obras meritórias, como dito acima.
Há uma segunda maneira pela qual a vontade humana pode ser tida como preparada para o dom da graça habitual em si. Agora, para que o homem se prepare para receber esse dom, não é necessário pressupor nenhum outro dom habitual na alma — caso contrário, cairíamos em um regresso infinito.
Mas é necessário pressupor um dom gratuito de Deus, que move interiormente a alma ou inspira o desejo do bem…
Portanto, a oração de um incrédulo “por simples negação”, ainda que materialmente falsa, é um cumprimento da lei natural dada pelo próprio Deus — uma preparação para a graça.
Repito com São Paulo:
“…nem mesmo julgo a mim mesmo. É verdade que minha consciência nada me reprova, mas nem por isso estou justificado: quem me julga é o Senhor” (1 Cor 4,3-4).
Eu não sei; ninguém pode saber o grau de inocência dos incrédulos. Mas, numa abordagem missionária, é natural supor a boa fé do nosso interlocutor. Ninguém conhece nossa verdadeira disposição interior, nem mesmo nós mesmos (com certeza absoluta); portanto, ninguém começará um diálogo missionário com um incrédulo dizendo:
“Caro senhor, eu não sei qual é o seu grau de inocência; talvez meu esforço seja inútil porque você não é um incrédulo por simples negação: nesse caso, você irá para o inferno; mas, se for um incrédulo por simples negação, então estaremos fazendo algo positivo.”
Nenhum missionário tradicional começa sua pregação desse modo. Todos os discursos missionários esperam a boa fé do interlocutor. O fato de um missionário saber que nem todos os homens estão de boa fé não o isenta do dever de tentar converter, passo a passo, todos os homens. E o primeiro passo da conversão é a observância da lei natural.
Além disso, embora saibamos que nem todos os homens estão de boa fé, não sabemos quais estão. Eu não disse que “em Assis todas as pessoas estavam de boa fé”, mas sim que “era lícito convidar todos os homens a rezar, na esperança de que estivessem de boa fé”.
Devemos distinguir a virtude da religião antes e depois do pecado original. Se Adão não tivesse pecado, quão fácil seria a demonstração da existência de Deus! Mas, após o pecado original, como ensina o Concílio Vaticano I, um conceito claro de Deus tornou-se muito difícil, e temos a necessidade moral da revelação mesmo para verdades que, em si mesmas, são reconhecíveis pela razão natural. O mais inteligente – talvez – dos povos pagãos, Aristóteles, concebeu uma ideia de Deus que não é verdadeira. (Hegel é mais aristotélico que São Tomás: nosso São Tomás modificou substancialmente o conceito de Deus de Aristóteles). Não creio que o juízo particular será um “exame de metafísica”; no entanto, o que São Paulo escreve é verdadeiro e deve ser bem compreendido.
Aqui é oportuno examinar o “Deus Desconhecido” de Atos 17,23:
Qual é a história desse culto ao “Deus Desconhecido”? São João Crisóstomo nos conta que, quando os atenienses enviaram Filípides para pedir ajuda a Esparta, em sua viagem ele teve uma visão espectral de uma personagem misteriosa que lhe disse: “Por que não me adoras? Eu te ajudarei.” Daí surgiu o culto a um “Deus Desconhecido”.
Mas o grande Cardeal Barônio oferece outra explicação, que não é irreconciliável com a anterior. Os atenienses começaram a compreender que era impossível atribuir aos seus deuses as características próprias da ideia de “ser” (esse): a percepção natural e implícita da vaidade dos ídolos os levou a pensar em um deus bastante diferente, cujos atributos ainda não estavam bem definidos. É razoável que um povo que enunciava conceitos tão sofisticados sobre o “ser” (esse) ficasse insatisfeito com ídolos. Assim, o “Deus Desconhecido” era objeto dessa busca interior por um Deus verdadeiro, “desconhecido” porque ainda “não conhecido”.
Todas essas premissas indicam que muitos cultos idolátricos da Antiguidade (assim como os de alguns povos contemporâneos) não eram formalmente idolátricos, pois não havia atribuição formal de atributos divinos aos ídolos (tais como eternidade, causa primeira, plenitude do ser, etc.). O que escrevi não é apenas uma hipótese, mas uma afirmação científica da Escola Etnológica da História das Religiões. O grande Wilhelm Schmidt, autor da monumental obra Ursprung der Gottesidee (A Origem da Ideia de Deus), mostra que muitos povos e religiões primitivas – mesmo tendo cultos que, à primeira vista, poderíamos definir como idolátricos –, acreditavam num único Deus principal, e só esse Deus possuía atributos como eternidade, causalidade universal, infinitude, providência etc.
No caso dos incrédulos por via de negação, essa idolatria pode ser reduzida a uma “observância vã” (às vezes, ao menos) não culpável, ou a uma observância vã não incompatível com a lei natural. A fé implícita é impossível no contexto de idolatria formal; mas penso que é muito difícil encontrar verdadeira idolatria formal, porque é difícil – após o pecado original – conceber a ideia de Deus que se deveria atribuir aos ídolos para que o culto a eles fosse idolatria em sentido próprio.
Imaginemos perguntar a um cananeu bíblico primitivo:
“Qual ideia de Deus você está atribuindo aos seus ídolos?”
O que ele poderia responder? Poderia ele dizer “ipsum esse subsistens”, ou “ser por si mesmo e não por participação”? (Não quero dizer que não existiam também verdadeiras mitologias pagãs gnósticas).
Podemos compreender as maledicências bíblicas contra a idolatria como uma forma de preservar a verdadeira religião entre os judeus. Mas devemos crer que Deus também amava os cananeus e os demais incrédulos, e que também a eles ofereceu a salvação.
Não havia satanistas em Assis. Obviamente, os atos de religião natural que podem preparar a alma para a graça devem ser compatíveis com toda a lei natural; portanto, devemos excluir práticas sexuais, mágicas, etc. Mas em Assis, a questão era a oração.
Se alguém atribui ao “Elefante Azul” prerrogativas divinas autênticas, é impossível que tenha fé implícita. Se alguém não atribui ao “Elefante Azul” tais prerrogativas divinas, e compreende que deve ser religioso, percebendo também a necessidade da existência de um Deus bem diferente, é possível que isso seja, per accidens, uma preparação para a graça. Podemos estender aqui o princípio da “consciência errônea de modo invencível”.
Não devemos esquecer que Deus não dá ordens impossíveis. Se a lei natural ordena ao homem ser religioso, temos duas possibilidades:
A) Deus tolera a observância vã de muitas pessoas ignorantes, que substancialmente não é idolátrica;
B) Deus ordena ser religioso sem conceder os meios para sê-lo.
Mas não podemos admitir a hipótese B.
Também não devemos esquecer que Deus distribui sua graça a este homem concreto, já após o pecado original: e Deus conhece as dificuldades de se construir uma teologia natural.
O convite de Assis foi um convite a fazer “o quanto se pode”, como escreveu São Tomás: “quod in se est facit”, preparando-se assim para receber a graça. E esse convite é possível sem apostar nem um centavo na boa fé dos participantes do encontro.
Podemos supor um ato bom de religião que expressa veneração a falsos deuses?
Consideremos Cornélio, o centurião:
Atos 10,1-4:
“Havia em Cesareia um homem chamado Cornélio, centurião da coorte Italiana. Ele era piedoso e temente a Deus, com toda a sua casa; dava muitas esmolas ao povo e orava continuamente a Deus. Um dia, por volta da hora nona, viu claramente, em visão, um anjo de Deus que entrava onde ele estava e lhe dizia: ‘Cornélio!’ Este, olhando fixamente para ele e cheio de temor, disse: ‘Que é, Senhor?’ E o anjo lhe respondeu: ‘Tuas orações e tuas esmolas subiram para memória diante de Deus.’”
Não quero sugerir soluções “sola scriptura”! :-)) Mas, como alternativa, gostaria de examinar como os teólogos medievais – especialmente nosso São Tomás – consideraram a oração de um pagão antes de sua conversão.
Certamente, sua oração – antes da conversão – não era o culto correto; a religião de Cornélio não era “A verdadeira religião”. Mas, apesar disso, essa oração foi aceita por Deus. E por que as orações de Cornélio foram “aceitas por Deus”? Porque – segundo São Tomás – ele possuía “fé implícita”. Pois bem, temos diante de nós a oração de um pagão que possuía fé implícita. Observemos que essa oração aconteceu depois da vinda de Jesus Cristo.
Nessa questão, encontramos-nos entre dois grandes erros teológicos:
-
A exigência de que a fé seja absolutamente explícita – nessa perspectiva (jansenista, entre outros), o homem teria que possuir conhecimento explícito de todas as verdades da fé para ser salvo;
-
E, no outro extremo, uma fé como um ato a priori – nessa perspectiva, qualquer culto a qualquer deus indefinido — independentemente do conteúdo desse ato — seria suficiente para tornar todo homem um cristão.
Essa última visão é – substancialmente e em sentido amplo – a Teoria do Cristão Anônimo, ao menos na forma como ela é popularizada.
Mas agora, voltemos ao cerne da questão:
A oração de Cornélio era um culto falso, mas foi transformada em uma boa oração pela fé; uma fé implícita:
S. Tomás, Suma Teológica, II-II, q. 10, a. 4, ad 3 (em algumas edições ad 4):
Entretanto, com respeito a Cornélio, deve-se observar que ele não era um descrente, caso contrário suas obras não teriam sido aceitas por Deus, a quem ninguém pode agradar sem fé. Ora, ele tinha fé implícita, pois a verdade do Evangelho ainda não estava manifestada; daí que Pedro foi enviado a ele para lhe dar instrução mais plena na fé.
(De Cornelio tamen sciendum est quod infidelis non erat, alioquin eius operatio accepta non fuisset deo, cui sine fide nullus potest placere. Habebat autem fidem implicitam, nondum manifestata evangelii veritate. Unde ut eum in fide plene instrueret, mittitur ad eum Petrus).
Mas podemos comparar Cornélio, que estava muito próximo da verdadeira religião, com um hindu ou um animista, muito afastados da Verdade? Sim, podemos! Ouçamos São Tomás:
In IV Sent., III d. 25 q. 2 a. 2
Devemos saber que Cornélio tinha fé explícita sobre o mistério da Encarnação; não obstante, teria sido suficiente para sua salvação mesmo se ele tivesse apenas fé implícita a respeito disso.
(sciendum, quod Cornelius habebat fidem explicitam de mysterio incarnationis, quamvis suffecisset ei ad salutem, etiamsi de hoc fidem implicitam habuisset).
Por que São Tomás pode afirmar isso? Porque, formalmente, aquele que não reconhece nem um só artigo da fé, peca contra toda a fé! Nada é mais verdadeiro do que Tiago 2:10: “Pois quem guarda toda a Lei, mas tropeça em apenas um ponto, torna-se culpado de quebrá-la toda.” Não podemos julgar um descrente simplesmente pela negação pura, olhando quanto ele acredita absolutamente — pois um pouco a menos já seria pecado contra a fé; “mais um, menos um” destrói a fé; o critério deve ser outro: devemos olhar para a disposição do sujeito e para quanto da Verdade explícita que Deus lhe revelou.
O todo — que podemos tomar como ponto de referência — não é a fé toda em si, mas a fé na medida em que foi revelada ao descrente particular.
Antes de avançarmos no estudo, aqui está outra citação importante que mostra que o grau de fé explícita pode ser muito pequeno e ainda assim bastante suficiente para a salvação.
II-II, a. 2 q. 7 ad 3
Título da questão: “Se é necessário para a salvação de todos que creiam explicitamente no mistério de Cristo?”
Algumas pessoas pagãs alcançaram a salvação,
ainda que não tenham crido explicitamente nele, pois tiveram fé implícita através da crença na providência divina, já que acreditavam que Deus salvaria a humanidade da forma que lhe fosse agradável.
Conclusão: É possível que um culto de um descrente (pela negação pura) seja aceito por Deus. É a fé implícita, a graça sobrenatural, que torna esse ato aceitável. A obrigação natural de ser religioso não prende o descrente para que “ele tenha que pecar contra a lei natural”: o descrente encontra o resgate divino — o dom da fé implícita. A fé implícita pode ser, materialmente, muito pobre.
Agora devemos nos perguntar: “O que exatamente é fé implícita?”
II-II, a. 2 q. 7 ad 3
Resposta à objeção 3: Muitos gentios receberam revelações de Cristo, como é claro em suas predições. Assim lemos (Jó 19:25): “Eu sei que o meu Redentor vive.” A Síbila também previu certas coisas sobre Cristo, como afirma Agostinho (Contra Fausto, XIII, 15). Além disso, lemos na história dos romanos que, na época de Constantino Augusto e sua mãe Irene, foi descoberta uma tumba onde jazia um homem com uma placa de ouro no peito com a inscrição: “Cristo nascerá de uma virgem, e n’Ele, eu creio. Ó sol, durante a vida de Irene e Constantino, tu me verás novamente” [Cf. Baron, Annal., A.D. 780]. Se alguns foram salvos sem receber qualquer revelação, não o foram sem fé em um Mediador, pois, embora não acreditassem explicitamente nele, tiveram fé implícita crendo na providência divina, pois acreditavam que Deus salvaria a humanidade da forma que lhe fosse agradável, e de acordo com a revelação do Espírito para aqueles que conheciam a verdade, como está em Jó 35:11: “Quem nos ensina mais do que as feras da terra?”
Santo Tomás de Aquino (1225-1274), Suma Teológica, Segunda Parte da Segunda Parte, Questão 5, Artigo 3:
Se um homem que descrê de um artigo de fé pode ter fé morta nos outros artigos?
Objeção 1: Parece que um herege que descrê de um artigo de fé pode ter fé morta nos outros artigos. Pois o intelecto natural do herege não é mais capaz do que o do católico. Ora, o intelecto do católico precisa do auxílio do dom da fé para acreditar em qualquer artigo da fé. Portanto, parece que hereges não podem crer em artigos da fé sem o dom da fé morta.
Objeção 2: Além disso, assim como a fé contém muitos artigos, uma ciência — a geometria, por exemplo — contém muitas conclusões. Um homem pode possuir a ciência da geometria para algumas conclusões, e ser ignorante de outras. Portanto, um homem pode crer em alguns artigos da fé sem crer nos outros.
Objeção 3: Além disso, assim como o homem obedece a Deus crendo nos artigos da fé, assim também obedece ao guardar os mandamentos da Lei. Ora, um homem pode obedecer a alguns mandamentos e desobedecer a outros. Portanto, ele pode crer em alguns artigos e descrer de outros.
Pelo contrário, assim como o pecado mortal é contrário à caridade, assim a descrença em um artigo da fé é contrária à fé. Ora, a caridade não permanece no homem depois de um pecado mortal. Portanto, também a fé não permanece depois que o homem descrê de um artigo.
Respondo que: Nem a fé viva nem a fé morta permanece em um herege que descrê de um artigo da fé.
A razão disso é que a espécie de todo hábito depende do aspecto formal do objeto, sem o qual a espécie do hábito não pode permanecer. Ora, o objeto formal da fé é a Primeira Verdade, como manifestada nas Escrituras Sagradas e no ensino da Igreja, que procede da Primeira Verdade. Consequentemente, quem não adere, como regra infalível e divina, ao ensino da Igreja, que procede da Primeira Verdade manifestada nas Escrituras, não possui o hábito da fé, mas mantém aquilo que é de fé de maneira diferente da fé. Do mesmo modo, é evidente que um homem cujo intelecto sustém uma conclusão sem saber como ela é provada, não tem conhecimento científico, mas apenas opinião sobre isso. Agora, é manifesto que aquele que adere ao ensino da Igreja, como regra infalível, assente a tudo o que a Igreja ensina; do contrário, se das coisas ensinadas pela Igreja ele mantém o que quer manter, e rejeita o que quer rejeitar, já não adere ao ensino da Igreja como regra infalível, mas à sua própria vontade. Daí ser evidente que um herege que obstinadamente descrê de um artigo da fé não está disposto a seguir o ensino da Igreja em todas as coisas; se não for obstinado, não está mais em heresia, mas somente em erro. Portanto, é claro que tal herege, com respeito a um artigo, não tem fé nos outros artigos, mas apenas uma espécie de opinião conforme sua própria vontade.
Resposta à Objeção 1: Um herege não sustém os outros artigos da fé, sobre os quais não erra, do mesmo modo que um fiel o faz, ou seja, aderindo simplesmente à Verdade Divina, pois para isso o homem precisa da ajuda do hábito da fé; ele sustém as coisas que são de fé pela sua própria vontade e julgamento.
Resposta à Objeção 2: As várias conclusões de uma ciência têm seus respectivos meios de demonstração, um dos quais pode ser conhecido sem o outro, de modo que podemos conhecer algumas conclusões de uma ciência sem conhecer as outras. Por outro lado, a fé adere a todos os artigos da fé por causa de um só meio, isto é, por causa da Primeira Verdade proposta nas Escrituras, segundo o ensino da Igreja que tem a interpretação correta deles. Portanto, quem abandona esse meio está completamente desprovido da fé.
Resposta à Objeção 3: Os diversos preceitos da Lei podem ser referidos quer aos seus respectivos motivos próximos, e assim um pode ser observado sem o outro; ou ao seu motivo primário, que é a perfeita obediência a Deus, na qual o homem falha sempre que quebra um mandamento, segundo Tiago 2:10: “Quem guardar toda a lei, mas tropeçar em um só ponto, torna-se culpado de todos.”
(Traduzido pelos Padres da Província Dominicana Inglesa. Copyright © 1947 Benzinger Brothers Inc., Versão em hipertexto Copyright © 1995, 1996 New Advent Inc.)
Há um provérbio italiano espirituoso que diz:
“Querias a bicicleta? Agora pedale!”
Você me fez muitas perguntas sobre Assis, agora aguente minhas respostas! :-))
Bem, onde paramos?
Agora temos que tratar corajosamente de um ponto decisivo, porque AQUI está a diferença entre Assis e o modernismo, o falso ecumenismo, o panchristianismo etc.
A questão é sobre o conteúdo da fé implícita: qualquer fé, mais ou menos explícita, deve ter conteúdo — mais exatamente, conteúdos sobrenaturalmente revelados —, caso contrário não seria fé, mas mero pensamento humano. Para os modernistas, religião é o surgimento de sentimentos religiosos; para eles, o conteúdo desse sentimento não é importante: basta um bom resultado existencial desse sentimento religioso. Eles raciocinam: “Está contente ou satisfeito por ser budista ou praticar sua religião caseira? Deixe esse sentimento surgir! Se você deixa seu sentimento religioso emergir, você é cristão, mesmo que não esteja consciente disso.”
Qual a diferença entre fé implícita, como aprendemos com São Tomás, e essa concepção modernista? As diferenças estão nas disposições do sujeito e no objeto da fé. O homem sabe pela razão natural que deve perseguir seu fim último; sabe que esse fim é bom, desejável; por isso deseja persegui-lo. A graça consegue penetrar esse desejo natural, e assim o desejo natural torna-se sobrenatural; este é o início psicológico do ato de fé. Já existem diferenças importantes entre as concepções católica e modernista da fé.
Deus revela Ele mesmo os meios do ato de fé, os conteúdos objetivos, mesmo que esse conhecimento não seja completamente explícito. Deus age de duas maneiras:
1- Pela sua providência natural; um descrente pode admirar a criação (Romanos 1:20: “Desde a criação do mundo, os atributos invisíveis de Deus, seu eterno poder e divindade, têm sido vistos claramente, sendo compreendidos por meio das coisas criadas”) e crer (ou também não crer);
2-Com uma inspiração sobrenatural imediata: podemos ler a autobiografia de algum convertido e admirar suas reflexões. Mas não podemos excluir inspirações misteriosas nos corações de muitos descrentes: será que devemos pensar que um pobre primitivo na Amazônia ou na Ásia está esquecido por Deus?
Em ambos os casos, uma verdade, um conteúdo, uma revelação sobrenatural — implícita ou explícita — é proposta ao homem. Uma boa vontade deseja, “escolhe”, todos esses meios que Deus lhe revelou.
São Tomás diz, a respeito desses descrentes — um homem que não crê por pura negação, como Cornélio, mas adere a tudo o que Deus lhe revela — que “ele faz tudo o que pode (quod in se est facit)” — ele não é, formalmente, um descrente — ele tem fé implícita.
Nesse sentido, podemos entender melhor a frase do Pe. Garrigou-Lagrange: “Formalmente estão mais afastados da verdadeira religião os que se desviaram preservando muitos dogmas do que os que tendem ao catolicismo abraçando poucas verdades.”
Um homem primitivo na selva, que “faz tudo o que pode”, tem mais fé do que um teólogo dissidente! E temos a mesma fé do homem primitivo — neste sentido, cremos no mesmo Deus —, mas não temos a mesma fé do teólogo dissidente, e não cremos no mesmo Deus que o teólogo dissidente, ainda que ele possa compreender melhor do que nós a procession trinitária. Podemos assim entender o que São Paulo diz em Atos 17:23: “...o Deus desconhecido que vocês reverenciam é aquele que eu lhes anuncio.” Em outro sentido, não temos o mesmo Deus do primitivo, mas temos o mesmo Deus do teólogo dissidente (sob um ponto de vista meramente material). Nesse último sentido é verdade que os deuses dos povos pagãos são demônios.
Também podemos entender por que o Papa São Pio X diz, na Pascendi, que o modernismo é inimigo não só da religião católica, mas de todas as religiões: porque o ato da religião, o ato que poderia preceder uma conversão, é basicamente minado. Assim, o Pe. Cornélio a Lapide diz que nos últimos dias o Anticristo lutará contra toda religião!
Tentei apenas começar a estudar os fatos de Assis: você não leu a argumentação completa que seria necessária, mas apenas alguns e-mails de um padre de montanha. Creio que mostrei que Assis não é apenas uma questão de ecumenismo, mas que muitos outros temas estão implicados. Não podemos fazer uma “volta de espírito” inconsciente: “Mortalium Animos não previu Assis, portanto Assis é um fato hediondo.” Há alguns fatos novos que não estão nos manuais pré-conciliares; e devemos ser capazes de avaliá-los serenamente. A batalha pela liturgia tradicional, pela Tradição Católica, etc., espera “vinho novo em odres novos” (Lc 5,38).
E o que devemos dizer sobre o ecumenismo? Confesso que, quando ouço essa palavra, meus cabelos se arrepiam! :-)) Mas vamos esquecer por um momento essa palavra. Devemos tentar algum esforço para que os descrentes se convertam? Sim, devemos. Podemos compelir o ato de fé? Não, não podemos. Podemos tentar persuadi-los e convencê-los com argumentos? Sim! E como começamos essa persuasão? “Oi protestante; sua mãe não era uma mulher honesta! Converta-se, senão o inferno vai te engolir,” ou tentando não “quebrar o caniço trêmulo nem apagar a mecha que fumega” (Is 42,3)? Tentando não quebrar o caniço trêmulo nem apagar a mecha que fumega... E isso é uma ação missionária? Sim, é uma ação missionária. E devemos ser missionários? Sim, devemos. O termo ecumenismo é abusado e usado para passar os piores erros? Sim, mas devemos ser missionários mesmo que o termo seja abusado.
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