Annibale Bugnini: O Grande Vilão da Liturgia
Certa manhã, em março de 2016, ao conferir as notícias do dia, deparei-me com uma manchete no site do Daily Express (um veículo cuja suposta “jornalística” já foi discutida neste site anteriormente), que estampava: “A FOTO INCRÍVEL que prova que Adolf Hitler viveu até os 95 anos com sua amante brasileira.”
O artigo fala sobre um livro de um autor brasileiro que afirma que Hitler não se suicidou em um bunker em Berlim em 1945, mas que escapou (possivelmente em um submarino alemão que havia desaparecido) para a América do Sul. Ele teria vivido lá até meados da década de 1980 sob um nome falso, viajando pelo continente e procurando por um tesouro enterrado.
A parte mais instigante do artigo (que demorou uma eternidade para carregar e estava atolado de anúncios pop-up e sabe-se lá mais o quê) era a fotografia. Ela mostra um homem idoso de pele clara ao lado de uma mulher mais alta e de pele mais escura, em um local que poderia plausivelmente ser na América do Sul. Minha imaginação começou a trabalhar, pensamentos começaram a surgir na minha cabeça: É possível que ele tivesse essa aparência se tivesse vivido mais tempo; muitos nazistas realmente fugiram para a América do Sul, talvez ele tenha sido um deles; essa teoria circula desde o fim da Segunda Guerra Mundial; realmente seria interessante se tivéssemos contado a história errada todos esses anos…
Mas antes que minha imaginação realmente fugisse do controle, um detalhe me impediu de ir longe demais: a foto é tão borrada. A autora afirma que Hitler supostamente viveu até a década de 1980, e ela compilou detalhes supostamente suficientes de sua vida na América do Sul para preencher um livro, mas a única evidência fotográfica que conseguiu apresentar foi uma imagem em que, por acaso, os traços faciais dele estão desfocados?
Dois anos depois, cientistas confirmaram a versão mais convencional da morte de Hitler, comparando seus registros dentários com o pedaço de mandíbula coletado pelo exército soviético no bunker em 1945. A Smithsonian Magazine, citando um relatório alemão, acrescentou que o ditador soviético Joseph Stalin “decidiu semear dúvidas sobre a morte de Hitler em uma manobra chamada ‘Operação Mito’. A ideia era fazer o mundo acreditar que os americanos ou britânicos estavam escondendo Hitler por algum motivo nefasto e assim associar o Ocidente ao nazismo.”
(Por coincidência, outro grupo de pesquisadores encontrou aquele submarino alemão desaparecido no fundo do mar ao norte da Dinamarca apenas um mês antes.)
O fascínio por teorias da conspiração e lendas populares pode ser difícil de ignorar, especialmente quando elas nos ajudam a dar sentido a algo que não parece certo ou justo. O fato de Hitler ter morrido a morte de um covarde, escondido em um bunker, e não ter sido humilhado como Mussolini ou levado à justiça como outros criminosos de guerra parece um fim mundano demais para alguém que causou tanto mal e morte. As pessoas instintivamente querem que haja mais na história.
Quando somamos os diferentes fatores: o submarino desaparecido e o conhecimento de que muitos criminosos de guerra nazistas realmente escaparam para a América do Sul, a nova narrativa começa a parecer plausível, especialmente se estivermos inclinados a acreditar nela.
Nesse ponto, se permitirmos que nossos vieses sobreponham-se às nossas habilidades de pensamento crítico, o surgimento de uma foto borrada que mais ou menos se parece com Hitler, vinda de um site de notícias falsas, é tudo o que precisamos como confirmação para nos tornarmos verdadeiros crentes.
E é provável que ainda haja muitas pessoas que se recusam a aceitar a explicação oficial e se apeguem à versão mais sensacionalista.
Como observei na minha resenha dos Episódios 1 e 2 da trilogia de filmes Mass of the Ages, sobre a Missa pré-Vaticano II, questionei algumas das alegações feitas no relato do filme sobre o arcebispo Annibale Bugnini. Bugnini foi secretário do Conselho para a Implementação da Constituição sobre a Sagrada Liturgia, que executou as reformas litúrgicas após o Concílio Vaticano II.
Descrevi Bugnini em meu artigo como o antagonista do segundo filme. Isso não foi surpreendente, os tradicionalistas o veem como um dos maiores vilões da história da Igreja, devido ao seu papel na revisão da liturgia romana.
Bugnini também é alvo de teorias da conspiração tradicionalistas, e provavelmente nunca se livrará das acusações de que era secretamente um maçom que desmontou propositalmente a liturgia para despí-la de seus elementos distintamente católicos.
A narrativa, e essa é uma história que eu pessoalmente cresci ouvindo e acreditando, é que ele queria que a Missa se parecesse com um culto protestante ou um ritual maçônico.
Essa acusação se incrustou tão profundamente em seu legado que eu arriscaria dizer que, embora 98% dos católicos hoje provavelmente nunca tenham ouvido falar de Bugnini, 98% dos católicos que já ouviram falar dele o conhecem como o maçom que destruiu a liturgia católica.
Eu meio que me sinto bobo investigando essas alegações, especialmente porque meu colega Adam Rasmussen escreveu recentemente sobre o mesmo tipo de teoria da conspiração a respeito de São Paulo VI, afirmando que “a melhor forma de ‘refutar’ esse tipo de teoria da conspiração é ignorá-la.”
Mas ele também escreveu: “A maioria dos historiadores, biógrafos e estudiosos (inclusive teólogos) não pesquisa nem escreve sobre teorias da conspiração.”
Como eu não sou nenhuma dessas coisas, vou me dar um passe dessa vez.
Na verdade, há duas teorias da conspiração sobre Bugnini propostas por Mass of the Ages:
A acusação de que ele era maçom;
E a noção de que ele realmente pretendia remover da Missa seus elementos “católicos” e substituí-los por elementos “protestantizados”.
A primeira é mais difícil de resolver, já que não há evidência concreta, mas há muitas acusações e rumores.
Acusações de Maçonaria
Se você fizer uma busca na internet por Annibale Bugnini, encontrará inúmeros sites e artigos que ou o acusam de ser maçom, ou simplesmente tratam isso como um fato consumado. Essas teorias sobre ele envolvem histórias de traição, intrigas no Vaticano, pastas perdidas, dossiês roubados e cofres arrombados. Há muitos testemunhos de segunda mão, mas ninguém conseguiu desenterrar qualquer evidência documental.
Por parte de Bugnini, ele negou categoricamente os rumores, que começaram a se espalhar amplamente em meados da década de 1970. O autor francês Yves Chiron, cuja biografia de Bugnini de 2016 foi lançada em tradução inglesa em 2018, cita diversas dessas negativas. Por exemplo, ele reproduz uma carta de 1976 do arcebispo Bugnini ao Papa Paulo VI negando as acusações:
“Devo afirmar firmemente o que tive a oportunidade de escrever a Vossa Santidade em outubro passado: que NUNCA, nem direta nem indiretamente, seja por ato ou por filiação formal, fiz parte da Maçonaria, ou de qualquer outro grupo ou movimento que dela se aproxime ou se assemelhe.”[1]
Também em 1976, Bugnini divulgou uma curta declaração que foi publicada em jornais, na qual dizia:
“O arcebispo A. Bugnini deixa sua defesa a cargo da Santa Sé, se esta julgar útil; mas nega categoricamente ter tido o menor contato, de qualquer forma, com a Maçonaria ou com qualquer outra sociedade do gênero.”[2]
Na edição inglesa do livro de Chiron, seu tradutor, Dr. John Pepino, acrescenta uma nota documentando outra negação feita por Bugnini em 1980 — uma carta ao editor da Homiletic and Pastoral Review, que havia publicado recentemente um artigo do escritor tradicionalista Michael Davies repetindo a acusação. A carta dizia:
“Repito o que escrevi em 1976: ‘Não possuo nada neste mundo mais precioso do que a cruz peitoral: se alguém for capaz de provar, com honestidade e objetividade, um mínimo de verdade no que afirmam, estou pronto para devolver a cruz peitoral.’”(“Archbishop A. Bugnini Denies Freemason Connection,” HPR 80.8 [Maio de 1980]: 4–6).[3]
Embora o retrato de Bugnini meticulosamente pesquisado por Chiron seja bastante crítico no geral, especialmente em relação ao papel que ele desempenhou na reforma da liturgia, ele deixa claro que não existe qualquer evidência documental das alegadas ligações de Bugnini com a Maçonaria.
Mais recentemente, no entanto, um sacerdote americano chamado Pe. Charles Murr veio a público com suas próprias recordações do tempo em que trabalhou no Vaticano com o cardeal canadense Édouard Gagnon. O Pe. Murr, que aparece no Episódio 2 de Mass of the Ages, escreveu um novo livro intitulado Murder in the 33rd Degree, no qual afirma haver provas irrefutáveis de que Bugnini era maçom.
Pe. Murr escreve que, por volta de 1974, os cardeais Dino Staffa e Silvio Oddi apresentaram ao Papa Paulo VI documentação indicando que Bugnini era um maçom ativo e que vinha infiltrando-se na Igreja, sugerindo que essa teria sido a motivação por trás da promoção das mudanças drásticas na liturgia.[4]
Em 1975, Bugnini foi enviado ao Irã como núncio apostólico — uma mudança de carreira que, para muitos de seus inimigos, sugeria que sua filiação à maçonaria havia sido descoberta, e que ele estava sendo exilado como punição.
Chiron, no entanto, contesta a alegação de que isso tenha algo a ver com sua remoção, observando que havia uma insatisfação crescente com Bugnini por parte de outros membros da Cúria, e que “o Papa Paulo VI ‘progressivamente retirou’ sua confiança do arcebispo Bugnini.”[5]
Esse rumor é certamente difundido, mas aqueles que estavam em posição de falar com autoridade sobre o assunto (como o Papa Paulo VI e os cardeais Gagnon, Oddi e Staffa) nunca falaram ou escreveram publicamente sobre as supostas evidências durante suas vidas.
Apesar das alegações do Pe. Murr de ter conhecimento do que foi descoberto, ele não apresentou nenhuma evidência documental.
Enquanto tal evidência não vier à tona, não parece razoável assumir que seja verdade. Assim como no caso da foto borrada, nossas imaginações são tentadas a preencher as lacunas da narrativa com a teoria da conspiração, seja ela qual for.
Uma liturgia “protestantizada”?
A segunda parte da teoria da conspiração sobre Bugnini é a de que ele teria buscado deliberadamente transformar a liturgia de uma Missa católica em um culto protestante. Ao contrário das acusações de maçonaria, essa teoria se baseia em fatos documentados — mas deturpados, exagerados e tirados de contexto.
Conheço bem essa teoria porque ouvi meu avô falar sobre ela pelo menos umas 50 vezes enquanto eu crescia. Na época, presumi que se tratavam de fatos estabelecidos, pelo modo como ele contava.
Só muito tempo depois, quando comecei a questionar a narrativa e a ideologia tradicionalistas, é que percebi que ele havia sido enganado e que os fatos não lhe haviam sido apresentados com precisão.
O documentário Mass of the Ages promove essa teoria, assim como o site da Sociedade de São Pio X (SSPX), grupo tradicionalista que não está em plena comunhão com a Igreja Católica.
Normalmente, essa narrativa é sustentada com dois “elementos de prova”.
O primeiro desses elementos não foi discutido em Mass of the Ages, mas é uma alegação amplamente difundida. Trata-se da acusação de que Bugnini e/ou Paulo VI teriam contado com a ajuda de seis ministros protestantes para reformar a liturgia.
Por exemplo, o site da SSPX, em uma “esclarecimento” de sua posição sobre a liturgia reformada, afirma:
“Esse rito foi, de fato, elaborado com a cooperação discreta (mas nem tão discreta assim) de certos ‘especialistas protestantes’, de modo que fosse aceitável tanto para católicos quanto para protestantes.”
O Vaticano, na verdade, respondeu a essa acusação com um esclarecimento oficial em 1976, explicando que em 1965, vários protestantes pediram para acompanhar o trabalho do Consilium, e que em 1968, seis teólogos protestantes foram selecionados para ‘tornar-se simples observadores.’
Em seguida, o texto afirma claramente:
“Os observadores protestantes não participaram da redação dos textos do novo Missal.”[6]
O segundo elemento de prova aparece com destaque no filme, que cita duas vezes uma suposta declaração de Bugnini dizendo:
“O caminho para a união com nossos irmãos separados, os protestantes, é remover da liturgia toda pedra, toda oração da Missa, que possa remotamente ser um obstáculo ou dificuldade.”
(Uma formulação mais comum da mesma citação, encontrada em muitos sites tradicionalistas, é:
“Devemos eliminar das nossas orações católicas e da liturgia católica tudo o que possa ser sequer a sombra de um obstáculo para nossos irmãos separados, ou seja, para os protestantes.”)
Isso é, ou uma distorção, ou uma tradução completamente deturpada do que Bugnini realmente escreveu — e está totalmente fora de contexto. A citação em questão é adaptada de um artigo escrito por Bugnini sobre a reforma das orações da Semana Santa, publicado na edição de 19 de março de 1965 do L’Osservatore Romano, o jornal oficial do Vaticano.
Bugnini estava escrevendo especificamente sobre a necessidade de revisar o texto da oração pela unidade dos cristãos, que, no rito pré-Vaticano II, dizia:
Rezemos também pelos hereges e cismáticos: para que nosso Senhor Deus se digne livrá-los de todos os seus erros e os reconduza à nossa santa mãe, a Igreja Católica e Apostólica.
P. Oremos.
D. Ajoelhemo-nos.
S. Levantai-vos.
V. Deus onipotente e eterno, que salvas a todos e não queres que ninguém se perca: olha para as almas enganadas pela astúcia do diabo, para que, tendo rejeitado todo o mal da heresia, os corações dos que erram se arrependam e retornem à unidade da Tua verdade. Por nosso Senhor Jesus Cristo, Teu Filho, que vive e reina contigo na unidade do Espírito Santo, Deus, por todos os séculos dos séculos.
R. Amém
Pode-se imaginar que essas orações, especialmente quando proclamadas em voz alta na língua do povo, talvez não despertem o desejo de conversão nos corações de nossos irmãos e irmãs protestantes e ortodoxos.
As orações da Sexta-feira Santa têm sido há muito tempo fonte de controvérsia.
Você talvez se recorde da polêmica em torno da oração pelo povo judeu no Missal de 1962, o que levou o Papa Bento XVI a revisar essa oração em 2008, o que, por sua vez, gerou uma nova rodada de controvérsia.
(Naturalmente, alguns tradicionalistas acham que nem mesmo o Missal de 1962 foi longe o suficiente, pois já havia removido o adjetivo perfidis — “pérfidos” — ao descrever os judeus.)
Agora, com esse contexto, isto é o que Bugnini realmente escreveu (ênfase acrescentada):
“A 7ª oração [do novo rito da Sexta-feira Santa] tem o título: ‘Pela Unidade dos Cristãos’ (não ‘da Igreja’, que sempre foi uma). Não são mais usados os termos excluídos ‘hereges’ e ‘cismáticos’, mas ‘todos os irmãos que creem em Cristo...’
Os estudiosos procuram lançar luz sobre as fontes bíblicas e litúrgicas das quais os novos textos derivam ou foram inspirados, o que os Grupos de Estudo do “Consilium” realizaram com um cinzel. E digamos que frequentemente o trabalho procedeu ‘com medo e tremor’, sacrificando termos e conceitos tão caros, e agora parte da longa tradição familiar. Como não lamentar que ‘a Mãe Igreja — Santa, Católica e Apostólica — tenha se dignado a revogar’ a sétima oração? E, no entanto, é o amor às almas e o desejo de ajudar de qualquer modo o caminho para a união dos irmãos separados, removendo toda pedra que pudesse remotamente constituir um obstáculo ou dificuldade, que levou a Igreja a fazer até esses sacrifícios dolorosos.“[7]
Mais uma vez, é assim que a citação foi apresentada em Mass of the Ages (“Missa dos Séculos”):
“O caminho para a união com nossos irmãos separados, os protestantes, é remover toda pedra da liturgia, toda oração da Missa, que pudesse remotamente ser um obstáculo ou dificuldade.”
Existem duas maneiras pelas quais essa citação altera completamente o significado de Bugnini. Primeiro, Bugnini não usa o termo “protestantes.” Certamente, ele se refere a eles em parte. Mas a oração pela unidade dos cristãos é para todos os cristãos que não estão em plena comunhão. Isso também inclui as Igrejas Ortodoxas, os Velhos Católicos e até mesmo grupos tradicionalistas radicais que romperam comunhão com Roma.
Em segundo lugar, a citação distorcida acrescenta a frase “toda oração da Missa.” Não menciona o contexto, que é o seu ponto de que é extremamente pouco caridoso chamar nossos irmãos separados de hereges e cismáticos. Ao alterar a citação, os cineastas criaram a impressão de que Bugnini queria despojar a Missa da teologia e tradição católicas, o que não é nem de longe o que ele estava dizendo.
Dito isso, concluirei com a Oração revisada pela Unidade Cristã, encontrada no atual Missal Romano:
Oremos também por todos os nossos irmãos e irmãs que creem em Cristo, para que nosso Deus e Senhor, ao viverem a verdade, se compadeça de reuni-los e mantê-los em sua única Igreja.
Oração em silêncio.
Presidente: Deus todo-poderoso e eterno, que congregas o que está disperso e conservas unido o que congregaste, olhai benignamente para o rebanho de vosso Filho, para que aqueles que um só Batismo consagrou sejam unidos pela integridade da fé e pela caridade fraterna. Por Cristo, nosso Senhor.
R. Amém.
Mike Lewis
0 Comentários